9/01/2007

O Ator Misterioso

Se o ator não se maquiasse, seria possível ver no seu corpo marcas, listras, manchas percorrendo a epiderme. Todo mundo vê, mas ninguém ousa dizer que, quando o ator representa, sua pele fica totalmente transparente e se vê tudo o que tem dentro.
Valère Novarina

Outsider

O ator misterioso é aquele que constrói ações, consciente de que, o que é visível aos olhos do espectador é apenas uma pista, que indica o caminho tortuoso que leva ao intenso processo interno e velado que move e justifica essas ações.


Nesse sentido as ações têm um caráter essencialmente poético, na medida em que se conformam como retratos análogos ou metafóricos das idéias e ações explicitadas no texto e na encenação. O ator misterioso não mostra nem conta, ele sugere e descortina. O espectador não assiste impassível a um desenrolar de fatos, mas decifra uma sucessão de sinais artesanalmente justapostos e emitidos através do corpo domado do ator.


O Coração Delator


Todas as habilidades técnicas, produzidas por anos de formação, devem igualmente tornar-se misteriosas, invisíveis frente à necessidade primeira de humanidade do personagem, que torna o seu comportamento crível e a história que vive plausível, apesar de estranha.
A técnica existe como um segredo que não pode ser revelado, pois o que interessa ao espectador não são as habilidades extra-humanas do ator, mas os afetos demasiado humanos do personagem.

A apropriação do texto como disparador e guia para a construção das ações é uma via de mão dupla na qual o ator deixa-se influenciar de maneira absoluta pelas palavras do autor, ao mesmo tempo em que tenta ultrapassar os significados limitados da palavra escrita, deixando antever que o que está falando esconde em suas entrelinhas um território desconhecido de memórias, imagens e estados de alma. O ator está em grande parte do tempo querendo dizer uma coisa, ao mesmo tempo óbvia e distante, que o atormenta e o impele à ação.

Nesse sentido o intenso aproveitamento dramático da pausa serve, para além de suas possibilidades de sugestão e de produção de expectativa, como vínculo definitivo entre ator e espectador, sustentado pela eloqüência do olhar. O silêncio, para o ator misterioso, diz tanto ou mais do que qualquer palavra.

Outsider


Conhecer texto e autor em profundidade é fundamental na medida em que a ficção é o substrato firme sobre o qual o ator age, cuja estrutura sólida o permite construir com eficiência a narrativa misteriosa e o impede de cair no fosso sem fim da abstração carente de sentido e da auto-referência gratuita. Numa performance misteriosa madura o ator já não reconhece divisão entre texto e ação, na medida em que ambos representam uma unidade criativa orgânica e indivisível.

A simplicidade dos meios cenográficos obriga o ator a lançar mão de recursos poéticos também no manuseio dos poucos elementos cênicos, que devem colaborar para o desenvolvimento das ações, nunca num sentido ilustrativo ou meramente decorativo, mas assumindo por muitas vezes funções dramáticas específicas, diferentes daquelas do seu uso cotidiano. A idéia é de que esses objetos possam criar, a partir da exploração criativa do ator e tendo em vista as propostas da encenação, uma significação múltipla e enigmática. O ator dá vida aos mistérios do objeto, expondo seus sentidos obscuros e sugerindo uma vida ativa insuspeita nas coisas inanimadas.

O ator misterioso não trabalha com a exposição virtuosa de suas intenções, mas com a contenção de seus impulsos espetaculares, atuando sempre sobre um campo de tensões não ditas e desejos inconfessáveis. Esta tensão crescente encaminha meticulosamente as ações misteriosas até o momento da terrível e fantástica revelação final, no qual o destino fatídico do personagem finalmente vem à tona.

Renato Turnes

Nenhum comentário: